1. Barbeiro: Fazendo a Cabeça do Povo
"Se vier o tempo em que não pudermos rir de nós mesmos,
será uma época muito triste." ~ Gordon B. Hinckley
Se existe um profissional que tem um negócio chamado de ‘público cativo’, é o nosso amigo barbeiro. Atencioso, bom de papo, com um pitaco pronto para a política ou futebol, vai conquistando sua clientela...
Já vi gente trocar de advogado, médico, obstetra, pedreiro. Mas deixar de freqüentar um bom barbeiro, é prova de insanidade. Ao menos que ele viaje, se aposente, ou fique doente.
Tem barbeiro que curte tanto a profissão, que vão se passando os anos e ele se esquece até de falecer! Eu conheci um assim... Aliás, foram dois, e um era pai do outro. Conto já...
Quando pequenos, meu pai nos levava – meu irmão e eu – ao seu Cleosbaldo. Nunca entendi porque uma mãe resolve chamar um filho de ‘Cleosbaldo’ – deve ter tido uma gravidez complicada ou um parto difícil pra burro!
Era só a gente sentar na cadeira, que ele vinha com a mesma pergunta: vai cortar como... Príncipe Danilo ? Meu pai explicava mais uma vez que era pra aparar aqui, abaixar ali, etc. Acabei ficando curioso, e perguntei sobre o tal príncipe...
Ele explicou que o corte era feito colocando uma cuia de coco na cabeça, e passando a máquina ao redor. O que sobrasse era o tal penteado. Pensei: coitado desse cara – deve ter morrido solteiro!
Mas o seu Cleosbaldo tinha uma arma secreta. Era sua terrível Máquina Zero. Naquela época, não era movida a eletricidade, mas funcionava mecanicamente. Ele começava a fazer o tlec-tlec na cabeça da gente e – de repente – dava aquela beliscada... Ai!
Aí ele vinha sempre com a mesma desculpa: “Tenho que mandar amolar essa máquina, tá beliscando um pouquinho...” Mas o ‘pouquinho’ dele, não havia cristão que agüentasse, e ele acabava voltando com o tlec-tlec da tesoura mesmo!
No final do corte, voltava ele com suas frases batidas: “Agora vai arrumar namorada, hein?!” Os adultos presentes riam, a gente torcia o bico e pulava da cadeira.
Se fosse por mim, só cortava cabelo em duas ocasiões: quando tivesse que tirar retrato ou estivesse ‘pingando’ de piolho!
Quando eu já estava mais crescido, seu Cleosbaldo teve que viajar. Indicaram-me a barbearia do pai dele. Se o filho já tinha mais de setenta anos, imagina o pai! E lá fui eu, atrás do verdadeiro Tesourassaurus Rex!
O homem foi bastante educado. Me atendeu em casa, e não citou o príncipe, as namoradas, nem me assustou com a terrível máquina zero. Paguei, saí, e nunca mais voltei por lá. (Seu Cleosbaldo também não tirou mais férias!) E se o Mr. Rex continuou cortando, também não sei. Afinal, ele já havia cruzado o Cabo da Boa Esperança fazia tempo...
Tem também a única vez que cortei com um barbeiro que tinha mau hálito. Acho que se ele fornecesse uma máscara ao cliente, e desse uma boa baforada na cabeça, tingia os cabelos de uma cacetada só!
Poderia até ficar famoso com sua técnica natural. Se o cliente não pudesse escolher a cor, ao menos escolheria o sabor. Imagine o bafo-de-onça perguntando: E aí, vamos tingir de cebolinha, mortadela ou salaminho?
Mas nem só de aterrorizar meninos vivem as barbearias...
Teve uma vez – lá no nordeste – que passei a cortar com um rapaz que era o rei do improviso. Como o preço cabia no meu bolso – ambos eram bastante reduzidos – virei freguês.
Pra molhar o cabelo, ele usava um recipiente de desodorante, cheio de água de torneira. A cadeira, ele buscava na cozinha mesmo. O espelho ficava na sala. E o corte era feito na varanda. Uma técnica de marketing perfeita: o cliente na varanda chamava a atenção dos clientes que passavam na rua e... Batata!
Certa ocasião, já vinha caindo a noitinha quando começamos a aventura. Era mais emocionante do que pular de pára-quedas, pois o final era sempre imprevisível.
De repente, acabou a energia. Com o corte já pela metade, colocamos a cadeira na calçada, pra aproveitar a luz da lua. Como o tempo estava nublado, a minha única alternativa foi segurar duas velas acesas – uma em cada mão – sob o olhar admirado de quem passava!
Hoje, quando conto, quase ninguém acredita. Nem sei se eu mesmo acreditaria, caso não houvesse vivido na pele... Concordo. Às vezes, é bem mais fácil acreditar em príncipe.
2. Camelô: De Temporário a Permanente
“A pedra no sapato de minha professora primária era meu amigo Louie. Ele sentava-se na sala de aula e mastigava a gravata até ficar molhada e desfiada. Ela vivia chamando a atenção dele...
Mais tarde, ele se tornou um homem de posses e eu aprendi a nunca subestimar o potencial de um menino para ter êxito na vida... Mesmo quando ele mastiga a gravata!” ~ Gordon B. Hinckley
Cada geração tem suas manias. A minha, contava os centavos pra gastar no fliperama . Como quase ninguém tinha videogame em casa, era lá que nos encontrávamos após a escola.
Minto. Eu estudava à noite. Mas dava uma passada rápida por ali após o trabalho. Ganhava a vida como camelô.
Fiquei contente quando o Leônidas me arrumou aquele emprego na barraca do Tuca. As vendas eram pra lá de incertas, mas a diversão era garantida!
Nossa barraca era de mochilas e meias, embaixo do viaduto. Ali, exercitávamos nossas malvadezas. Tinha um homem que vendia uns biscoitinhos amarelos, uma imitação barata de Cheetos. Aliás, bem barata, pois aquele sacão por um real cabia no mais modesto dos orçamentos.
Os biscoitos ficavam esperando o saco abrir pra começar a dar cria. Quanto mais se comia, mais biscoito aparecia! Ninguém dava conta de comer um saco inteiro daquele plastiquinho salgado. (Nem mesmo o Soró, que tinha a fama de esfomeado.)
Num dia de menor movimento, alguém deu a idéia de tocarmos fogo nele. (No biscoito, não no Soró.) E não é que o infeliz pegava fogo mesmo? Aquele isopor tingido de amarelo devia nos arrebentar por dentro!
Como vingança, passamos a tacar fogo nos biscoitos, um a um, e os jogávamos em frente à barraca do vendedor. As vendas dele chegaram quase à zero, e ele acabou mudando de ponto. Embora fosse engraçado na época, às vezes bate aquela pontinha de remorso por ter sido um aprendiz de incendiário.
Almoçávamos numa Kombi branca. Um marmitex pra cada um, um guaraná pra cada dois. Naquele mini-refeitório improvisado, batíamos nosso papo de camelô. A quentinha era devorada sem trégua, sob um calor infernal. O suor escorria do queixo, indo salgar mais a marmita.
Algumas semanas de trabalho foram suficientes para que eu descobrisse o fliperama das redondezas. Passei a perambular por ali sempre que tinha uns trocados. Enquanto fazia o quilo, virava detetive e atirava pra todo lado no Elevator . No próximo minuto, já era um piloto de Fórmula Um. Com direito a ar condicionado, pelo módico valor de vinte e cinco centavos a ficha!
Num dia em que estava abonado , acabei me empolgando. Pulei fora da Kombi e fui me refrescar no... Você já sabe. De ficha em ficha, minhas moedas foram se esgotando. Os ponteiros do relógio me fitavam impacientes. Comecei à uma da tarde. Quando o dinheiro acabou, faltavam quinze para as quatro.
O Tuca já me esperava do lado de fora da barraca. Braços cruzados, as bochechas vermelhas, o olhar soltando labaredas. Sem mais delongas, cuspiu logo os marimbondos:
“-- Sabe que horas são? Eu preciso ir ao banco – tô com uma boleta atrasada! Agora, vou ter que pagar juros! Se for fazer isso de novo, nem precisa aparecer amanhã!”
Pensei por um instante: se eu tiver dinheiro, é isso mesmo o que eu vou fazer. Como a demissão era a saída mais provável pra descolar uma graninha, lasquei de volta:
“-- Tá combinado. Pode acertar comigo hoje mesmo.”
No outro dia, já um ex-camelô, venci mais algumas corridas, acertei mais alguns espiões... E lá se foi mais um provável concorrente do Sílvio Santos!
3. Churrasqueiro: Maratonista por Profissão
"Se há algo que traz paz e alegria ao coração humano e à família é viver dentro de nossas possibilidades. E se há algo que traz tristeza, desânimo e desespero é ter dívidas e obrigações que não podemos saldar." ~ G. H. Durham
A profissão de churrasqueiro sempre me tocou bem de perto. Foi com ela que meu pai ganhava a vida. (Se você também aprontou quando criança imagine quantas coças de palito eu levei! A poupança ardendo nos servia de lembrete para não repetirmos a façanha...)
A exemplo dos Alcoólicos Anônimos, que organizam grupos de ajuda para os que convivem com o dependente, deveria haver assistência permanente para a família dos ambulantes...
Não estou sugerindo que meu pai tenha sido rude. Muito pelo contrário: era um camarada bastante divertido. Mas quem via aquele paraibano animado, falante, nas feiras-livres ou no centro, não imaginava a maratona que ele enfrentava por detrás dos bastidores.
Desde a compra do material até o retorno para casa com as férias no bolso, o churrasqueiro tem de matar um leão por dia. Comprar a carne, os palitos e o carvão. Preparar o molho e a farofa. Socar o alho e temperar tudo na medida certa. Empurrar o carrinho e cuidar da manutenção. Ao transitar apressados pela casa, era bastante comum nos depararmos com uma montanha de carne picada na cozinha. Em cima da mesa, a pilha de carne variava de cor: boi, frango, porco, camarão... Com sua paciência de Jó, o pai ia intercalando pedaços de batata, bacon ou coração, tecendo um colar de bijuterias em cada palito. Os fregueses achavam aquilo ‘jóia’! Nós também.
Sua especialidade era o galeto. Um frango inteirinho aberto – espetado em dois palitos – e mergulhado ainda crocante na farofa. Na feira de domingo, era o almoço garantido dos feirantes. Até hoje, sinto água na boca só em pensar...
Foi nesse universo que percebi ainda criança, como os ossos do ofício podem ser mais duros pra muita gente. O homem que nos fornecia os palitos já era idoso – bem idoso – além de deficiente visual. Dava um baita exemplo ganhando o sustento com as próprias mãos.
Sua filha era quem nos trazia as encomendas. Limpinhos, bem afiados, amarrados em feixes de cem. E voltava alegre com o dinheiro também limpo daquele trabalho tão honesto. Aquela família nos ensinou que o verdadeiro cego é quem prefere não enxergar as possibilidades que a vida tem a oferecer.
Até hoje fico admirado ao pensar em como aquele homem cortava o bambu, e fazia os palitos, de forma artesanal. Imagino-o a conferir as pontas dos palitos, um a um, imerso em seu mundo de escuridão.
Ou seria a filha quem realizava essa etapa? Não sei, e acho que nunca saberei. Mas quem elogiava o tempero lá na feira não podia sequer imaginar que tinha em mãos uma obra de arte.
Naquela época, além dos amigos ‘televizinhos’ – sempre lembrados pelo Daniel Azulay – havia também os ‘gelovizinhos’. Era a turma que vivia pedindo gelo na casa dos outros!
Meu pai, sempre inovador, aproveitou pra criar sua versão particular. Encontrava carne na promoção, estocava tudo que podia na casa do seu Epaminondas, cujo coração era maior do que o próprio congelador.
Qualquer corte na mão ou farpa no dedo caía logo no esquecimento quando meu pai ganhava as ruas e gritava aos quatro ventos que ‘provar seu churrasco era a opção mais inteligente do momento’.
Além do manjado ‘moça bonita não paga, mas também não leva’, seu grito de guerra era:
“-- Vamu cumê, gente! Vamu cumê, que o mundo vai acabá hoje!”
Ao ouvir os elogios dos fregueses, eu notava que um brilho especial aparecia em seu olhar. Era o orgulho pelo reconhecimento de um trabalho bem feito.
Para nós, meninos, acompanhá-lo era um grande barato. No caminho, ao lado do viaduto, havia uma árvore centenária, repleta de cipós. A inclinação do terreno criava um pequeno precipício.
Ali parávamos a cada vez. Primeiro ele se balançava, imitando o Tarzan que assistíamos em preto e branco. Depois, levantava cada um de nós, e nos empurrava rumo ao desconhecido. Aquilo era melhor que a Disney!
À beira da churrasqueira, aprendi lições que levo por toda a vida. A primeira delas, com meu irmão mais velho. Eu havia acabado de entrar na escola, e como ele estava um ano adiantado, já dominava valiosas técnicas de negociação.
No começo da jornada, ganhávamos dois churrascos de brinde. Eu comia logo o meu, mas ele tinha uma estratégia melhor... Aguardava o próximo freguês, e vendia o próprio brinde.
No minuto seguinte, lá estava o mano em frente à vitrine da padaria, escolhendo entre o pudim, refrigerante, salgado ou quindim. Antes do fim da noite o pai liberava a churrasqueira. Aí sim, podíamos comer à vontade, e ele sempre se dava bem. Garoto esperto o meu irmão!
A segunda aconteceu numa noite de verão. Meu pai havia ido buscar troco – ou ao banheiro – não me lembro, mas acabei ficando sozinho na carrocinha. Afinal, eu já tinha quase doze anos!
Chegou um maltrapilho e perguntou o preço do churrasco. Informei que eram três cruzeiros. Ele saiu quieto pra trás do carrinho – era uma grande área, embaixo do viaduto. Começou a se abaixar e levantar, num gesto pra lá de estranho...
Em princípio não entendi a cena. (Afinal... Eu tinha menos de doze.) Mas qual não foi minha surpresa ao perceber que ele estava pegando palitos com pedaços de carne e os enfiando apressadamente boca adentro.
Fiquei paralisado. Nunca tinha visto alguém passando fome. Eu tinha poucos segundos pra decidir. Meu coração gritava para que eu desse uma dúzia de churrascos ao pobre homem, mas minha mente fingia não ouvir, pensando no que meu pai diria a respeito...
Quando chegou, contei-lhe o ocorrido. Ele ouviu atentamente, e no final comentou: “você devia ter dado alguns pra ele.”
Além do galeto, o velho tinha também uma arma secreta para atrair a clientela. Era um churrasco ‘desse tamanho’, feito de pura gordura! Quando ele sacudia aquele boi em cima do braseiro, fisgava fregueses no final do quarteirão. Tinha lojista que largava até o balcão para conferir aquele cheirinho...
No fim da noite, ele mergulhava a isca na farofa, e lambuzava a cara de farinha, acompanhado de perto por seus meninos e um litro de Fanta laranja.
Mas o tiro acabou saindo pela culatra . De tanto comer gordura, sua pressão foi subindo, subindo, a ponto de matá-lo de derrame. No auge dos seus quarenta e sete anos, deixou minha mãe viúva. E sem bens, como frisava seu atestado de óbito!
Quase sem acreditar, li as palavras mais frias que um pedaço de papel poderia suportar: ‘Não deixou bens. Deixou três filhos.’ E a conclusão era ainda mais cortante: ‘O referido é verdade e dou fé.’
Fui o primeiro a receber a notícia, naquele tom de punhalada. Que desperdício: escrever um documento inteiro para acusar um cristão de ter deixado filhos! Se esse foi seu único erro digno de nota, meu pai já deve estar num bom lugar...
O que o atestado não mencionou, foi que ele deixou aquele carrinho amarelo e uma Bíblia. Após ponderar se daríamos continuidade à profissão, minha mãe decidiu retornar à costura. Vendemos o carrinho. Ficamos com a Bíblia.
Foi-se o velho, ficaram as lembranças e os ensinamentos. Nunca mais vi a bonita filha do cego, nem levei coça de palito. Nunca mais assisti Tarzan, nem pendurei no cipó ao lado do viaduto. E até hoje evito gordura.
Ficou o respeito por todo e qualquer trabalho honesto, executado com alegria, a despeito da dureza do dia a dia. Ficou o gosto pelos prazeres simples da vida, e a lembrança de que é gratificante fazer o melhor quando a vez é toda sua.
Creio não haver maior tesouro que um menino possa desejar...
4. Cobrador: o Regente do Coletivo
"Aquilo que persistimos em fazer se torna cada vez mais fácil para nós; não que a natureza da coisa em si mude, mas é nossa capacidade de realizá-la que aumenta." ~ Ralph Waldo Emerson
Você também gosta de travar o despertador e aproveitar aqueles minutinhos a mais embaixo da coberta?
Pois saiba que a essa hora já tem mais cobrador de ônibus circulando pela cidade do que bolinhas de pêlo grudadas na sua blusa de crochê!
Confesso que essa foi uma das profissões que tentei, mas não emplaquei. Com uma carta de referência fresquinha nas mãos, fui diversas vezes ao escritório da empresa de ônibus, mas nunca tive êxito.
Meu tio teve mais sorte. Sem carta de apresentação, entrou logo de primeira. E saiu do mesmo jeito que entrou! Marinheiro de primeira viagem, não agüentou o tranco – ou os solavancos – e vomitou antes do ponto final.
Se existe um profissional que tudo sofre, tudo vê, tudo ouve, tudo espera e tudo suporta... É o nosso amigo cobrador. Nas catracas da vida, de ponto em ponto, com alguns quebra-molas no meio, ele – ou ela – reza pela cartilha que tem ao menos três lições: paciência, simpatia e educação.
Você pode até dizer que tem alguns que não fazem muito bem o dever de casa, concordo. Mas já pensou como deve ser receber em média dois cumprimentos por hora, e passar o resto do dia quase invisível? Como deve ser ter de trocar uma nota de cinqüenta logo na primeira corrida da manhã?
Embora seja uma profissão cheia de altos e baixos – "Tem gente que acorda de mau humor e vai descontar no cobrador..." – boa parte declara que gosta do contato com as pessoas. Dizem também que a profissão é bastante assediada. "Tem gente que entrega o dinheiro bem enroladinho… com um número de telefone anotado..."
Se por um lado sobram cantadas, por outro faltam banheiros. Pelo menos, em número suficiente. Na ‘hora H’, a solução é parar o ônibus fora do ponto mesmo e o boteco mais próximo já serve pra aliviar o aperto!
Além da certeza de levar o leite das crianças no fim do mês, são as experiências divertidas que ajudam a segurar a barra. Eu mesmo já presenciei duas delas:
Na primeira, um magrelinho estava beijando a namorada no banco de trás. Estavam distraídos da vida, quando o ônibus passou correndo num quebra-molas. Foi boca pra um lado, língua pro outro, e o cobrador caiu na risada! Os dois ficaram vermelhos, e eu fiquei tentando disfarçar, já que a situação era daquelas que é melhor nem tentar remediar...
Na segunda, o cobrador pediu a um baixinho que passasse por uma roleta já meio girada, alegando que o passageiro anterior havia ‘errado a roletada’.
O homem virou pra trás, e teve a infeliz idéia de perguntar ao próximo passageiro se ele passaria junto. (Até hoje não entendi o porquê...) O grandalhão topou.
Enquanto os dois se espremiam na roleta, o cobrador observava a cena com um sorrisinho no canto da boca...
Quando terminou aquela ‘travessia do Mar Vermelho’ , o baixinho agradeceu aliviado. Em tom de deboche, o outro respondeu: “Obrigado a você!”
O ônibus todo começou a rir. Aí, não teve jeito: o baixinho ficou enfezado, e passou a discutir com o cobrador. O bate-boca foi aumentando, alguns passageiros se intrometeram, e estava armada a confusão!
Mas até hoje não sei o fim dessa história, porque logo chegou meu ponto, e eu tive que descer do ônibus...
5. Coveiro: o Agente Invisível
"Não é na morte ou num acontecimento que damos nossa vida, mas dia após dia, como nos é pedido." ~ Robert D. Hales
Lidar com a morte é uma maneira um tanto ingrata de se ganhar a vida. Mas se você pensa que ninguém sonha em ser coveiro, se enganou. Tem gente que declara ter nascido pra isso.
Embora nem todos tenhamos tendência para a mesma profissão, precisamos reconhecer o valor do responsável pelos sepultamentos. Entre outras qualidades, ele precisa ter coragem, bom senso e disposição – muita disposição.
Quem imagina que o coveiro apenas enterra corpos, precisa revitalizar seus conceitos. Ele trabalha como o coringa do baralho, agindo em diversas funções.
Começa como servente. Cava covas, constrói túmulos, leva o carrinho com os caixões. E vai aos poucos conquistando seu espaço. Ele é o pedreiro e o mestre de cerimônias ao mesmo tempo.
Como gente não tem hora pra morrer, o coveiro está sempre de plantão. Durante o cortejo , ele desempenha um papel essencial. Mesmo assim, se empenha em não roubar a cena. Afinal, o papel principal cabe ao falecido!
Exumar corpos – retirar os restos mortais de uma sepultura ou gaveta e transportá-los para um túmulo permanente – é uma de suas tarefas mais penosas. Aqui, os ossos do ofício se tornam um pouco mais duros. Quando o corpo ainda está em decomposição, a tarefa se torna quase insuportável!
Um bom coveiro é também um bom contador de histórias. Tem aquela do defunto que foi enterrado com o celular, a pedido da viúva. O problema é se alguém exumar o corpo e pegar o celular. Vai armar a melhor pegadinha da história! “Alô, aqui é o falecido Zé. Você pode dar uma chegadinha aqui na aléia 22?”
Tem também a do coveiro que foi soterrado enquanto abria uma cova. Um trator que retirava terra no local tombou sobre ele. Seu colega de trabalho correu em seu socorro e cavou até colocar a cabeça do acidentado para fora da terra. O pessoal da emergência veio logo para desenterrar o coveiro, que continuou vivinho da silva.
Sempre no anonimato, o coveiro segue um rígido código de conduta. Mesmo em sepultamento de gente famosa deve permanecer invisível, ainda que apareça na TV. Não deve falar alto ou fumar, e precisa tratar todas as famílias com respeito.
Por mais triste que seja a cena, não pode se envolver demonstrando tristeza, desconsolo, espanto ou dor. Precisa realizar o trabalho difícil para o qual ninguém mais ali teria estrutura. De tanto enfrentar o estresse, acaba aprendendo a controlar suas emoções.
Mas o coveiro também tem sentimentos. Assim como tem família, interesses e sonhos. Quando vai pra casa, carrega nos ombros o estresse emocional do dia.
Ao chegar em casa, ele se encontra com outra heroína: aquela que o recebe quando ele não precisa demonstrar ser o mais forte. É ela quem permanece ao seu lado quando alguém ridiculariza a profissão. É ela quem sonha ao seu lado com um futuro melhor para os filhos. É ela quem torce com ele pelo time do coração!
Quem decide ser coveiro começa uma vida nova. Precisa aprender a comunicar sua nova profissão aos amigos e familiares. Existe gente que não estende sequer a mão para saudar um velho amigo coveiro, ainda que estejam numa festa de aniversário!
Outros o cumprimentam de longe, gritando em tom pejorativo: ‘E aí, coveiro... Enterrou quantos hoje?’
Já passou da hora de aprendermos a respeitá-lo tanto quanto ele nos considera na hora da tristeza. Da próxima vez que comparecer a um enterro, preste atenção ao profissional que presta o derradeiro serviço a todos nós. Capriche na gorjeta, e aperte a mão dele por mim...
Quem sabe na sua partida até o coveiro chore também?
6. Doméstica: Suor a Qualquer Preço
"O silêncio é, algumas vezes, mais eloqüente do que os discursos." ~ Provérbio Árabe
Conformação e inquietação. Cumplicidade com a patroa. Descaso. Trabalho pesado. A rotina da doméstica pode variar da água pro vinho, mas uma coisa é certa: no Brasil, o trabalho das empregadas mostra a cara da desigualdade. Ou muitas vezes, esconde.
A força de trabalho das empregadas domésticas – que precisam sobreviver a qualquer custo – muitas vezes perpetua indícios da época da escravidão.
Como em algumas regiões do país tem gente batendo cabeça em busca de emprego, não faltam patroas dispostas a subvalorizar a mão-de-obra na hora do contrato.
Das oito às onze, arrumar os quartos, lavar a roupa, varrer a casa. Das onze às duas, preparar o almoço, buscar as crianças no colégio, servir a comida e lavar a louça. Das três às cinco, passar roupa, arrumar a bagunça, limpar o quintal e o jardim. Às cinco em ponto, preparar o jantar, organizar a cozinha e, finalmente, se trocar para sair. Às seis horas, subir num ônibus, ir para casa, arrumar, limpar, cozinhar e cuidar da própria família.
Diariamente, esse é o cotidiano de muitas mulheres que têm dupla missão: cuidar do próprio lar e do "lar postiço". Alívio de muita gente, as empregadas domésticas driblam o tempo para dar conta de todos os afazeres no dia-a-dia. Haja disposição!
Após essa jornada excessiva, sem domingo, feriado ou dia santo – depois de um mês inteiro limpando do teto ao chão, algumas não conseguem levam pra casa sequer o salário mínimo.
Braço direito, amiga, anjo da guarda, secretária do lar... Não importa o título que recebam, há sempre há consenso entre as mulheres que trabalham fora: empregada doméstica não pode faltar!
Apesar da correria, tem empregada que ainda encontra tempo para fazer as unhas, dar um trato nos cabelos, e até freqüentar a academia. No final de semana, dá faxina na própria casa!
Muitas delas vêem os filhos da patroa crescer. E não só vêem, mas colaboram na educação deles também. Os laços afetivos se desenvolvem a tal ponto, que passam a ser vistas e tratadas como membro da família. Não é raro uma patroa tornar-se madrinha dos filhos da empregada.
Se para as que têm carteira assinada a lei assegura as férias e o décimo-terceiro – ainda lhes falta o direito de folgar nos feriados e receber o Fundo de Garantia.
Mas nem tudo está perdido. A saída talvez seja a orientação e a organização, para que a categoria tenha quem a represente perante a sociedade.
Sem voz ativa, o silêncio acaba sendo a única arma desta incansável heroína. Um silêncio que – muitas vezes – acaba caindo em ouvidos surdos...
7. Dona-de-Casa: Um Anjo Sem Paraíso
"O principal trabalho do mundo não é feito por gênios. É feito por pessoas comuns, com a vida equilibrada, que aprenderam a trabalhar de modo extraordinário." ~ Gordon B. Hinckley
Do lar. Cinco letras carregadas de preconceito pra descrever a única profissional que de bom grado daria a vida pelos clientes. E com um sorriso no rosto, é claro!
Não é justamente isso o que ela faz – pouco a pouco – um dia de cada vez?
Embora a sociedade lhe conceda o título de ‘Rainha do Lar’, ela mesma sabe que seu trabalho consiste muito mais em servir do que em ser servida. Sua vida gira em função de outras. Insubstituível... Incansável... Invisível.
No exercício da maternidade, ela é a criadora da vida. No dia-a-dia, é a mantenedora. Porém, como aparentemente não gera bens e serviços remunerados, é relegada ao segundo plano na hierarquia profissional.
Sem contrato de trabalho, sem intercâmbios, sem um sindicato ou coisa que o valha a defender seus direitos, ela cumpre fielmente no anonimato suas tarefas. (Enquanto há energia elétrica, quem mais se lembraria de comprar as velas?)
Se há uma profissão permanente, é a Do Lar. No entanto, seu serviço é desvalorizado, justamente por ser efêmero . Tudo o que ela faz, logo será desfeito. O que ela limpa, em breve estará sujo outra vez. O que ela organiza, será sempre bagunçado. Sem dó.
Tal qual a esponja de aço que vive esfregando, enquanto se desgasta no lar ela desenvolve mil e uma utilidades... Em tempo: funções. É ela quem cuida da limpeza da casa, da alimentação da família, da administração das finanças. É ela quem leva os filhos à escola, ao médico ou às festinhas. Às vezes, leva as crianças à igreja.
Lavar, passar, cozinhar, fazer feira e supermercado. Comparecer às reuniões da escola, pagar as contas e serviços – como se o seu dia tivesse mais de vinte e quatro horas. Psicóloga, enfermeira, administradora e equilibrista... E tudo ao mesmo tempo!
Numa maratona que costuma levar à exaustão, quem muitas vezes paga a conta é a saúde da mulher, pois a sobrecarga vai aos poucos minando suas forças e a impede de desfrutar os prazeres a que tem direito...
Embora seu serviço não tenha valor de mercado, gera benefícios econômicos: Quem é que conserta as meias? Quem fica de olho nas promoções?
Se por um lado a interação e o exercício tendem a desenvolver os músculos e o raciocínio, por outro o isolamento e a inércia atrofiam a mente e encurtam a visão. Por isso, quem se dedica ao lar deve sentir-se livre para interagir com outros fora do âmbito familiar.
Quem participa de algum curso, grupo ou associação acaba criando oportunidades para que sua voz seja ouvida fora do círculo familiar. Além de esposa e mãe, passa a ser vista como conselheira, orientadora, criadora, artista e líder.
Maridos, filhos e amigos: olhai pelo anjo abnegado que dia a dia edifica vosso lar, enquanto é tempo. Numa época repleta de incertezas como a nossa – em que a mudança não tem hora pra acontecer – uma coisa é certa:
O paraíso fica muito vazio quando esse anjo se vai.
8. Lixeiro: o Menestrel da Avenida
"Nada é tão contagioso quanto o entusiasmo." ~ Grantland Rice
Segundo dados do IBGE , no Brasil são produzidos 2.643 quilos de lixo em apenas um minuto! Viu porque o coletor só passa correndo na sua rua?
Como cada um percorre até 12 quilômetros por dia – e recolhe em média três toneladas de lixo – são necessários 86.400 agentes de limpeza suando a camisa pra deixar o país limpo todo santo dia! Aposto que nem o Pedro imaginava essa maratona toda quando iniciou o movimento...
Desculpe. Esqueci de te apresentar: Pedro Aleixo Gary foi um francês que assinou o primeiro contrato de limpeza urbana no Brasil, no final do século dezenove, quando o Império ainda vigorava por aqui.
Após a passagem de cavalos pelas ruas do Rio, ele reunia a equipe para a ‘operação limpeza’. Os cariocas passaram a chamar a ‘turma do gari’ sempre que havia necessidade de uma geral.
Depois de quinze anos no cargo, passou a vaga para o primo, Luciano Gary. Embora a empresa tenha quebrado, o nome virou apelido, e acabou designando a função.
O trabalho foi aos poucos se modernizando. Na virada do século, a dedicada turma já utilizava mais de mil animais para recolher as toneladas de lixo da capital.
Embora os ajudantes aliviassem a carga, iam deixando o resultado de seus esforços pelo caminho...
Por motivos óbvios, foram aos poucos sendo substituídos. Ao menos, a descarga dos caminhões não deixa rastros no caminho do coletor.
Entre outras, o agente de limpeza pode exercer a função de varredor. Com a vassoura em punho, assovio nos lábios, e dono de um admirável bom humor, esse profissional mantém limpas as ruas, praças e vias públicas.
Em Portugal, o gari atende pelo nome de ‘almeida’. Adivinha por quê? Isso mesmo, o tal Almeida foi um dos primeiros diretores de limpeza urbana na capital portuguesa. Se a moda pega por aqui, não iam faltar trocadilhos:
"-- Sabia que o Almeida conseguiu emprego? Tá trabalhando de almeida!"
Mesmo com 99% das cidades brasileiras fazendo a coleta regular, ainda há bastante espaço para melhorias. Veja como você pode ajudar:
Ao longo da história, a falta de cuidado com o lixo e o esgoto já ceifou milhões de vidas. Durante o século quatorze, a peste negra chegou a matar mais de 700 europeus por hora. Prova de que, sem a ajuda dos profissionais do uniforme laranja, a situação pode ficar preta!
A partir de 1962, passou-se a comemorar o Dia do Gari. Anote aí: no dia 16 de maio, vamos alterar o placar do IBGE: Presenteie o profissional do saneamento urbano , ao menos com uma lembrancinha!
Mas fique de olho: se você pestanejar, ele vai é passar correndo...
9. Merendeira: Uma Lição de Humanidade
"O que é a Educação? É o treinamento da mente e do corpo. É o grande processo de conversão pelo qual o conhecimento abstrato se transforma em atividade útil e produtiva." ~ Gordon B. Hinckley
"-- Pode repetir?"
Essa era a pergunta preferida que fazíamos na época do antigo primário. E quando ouvíamos um ‘sim’ como resposta era como se tivéssemos tirado um dez na prova!
Não, não estamos em sala de aula, pedindo à professora que reforce a explicação, mas no refeitório. O sinal acaba de tocar, e começamos a primeira rodada da merenda. Daqui a pouco, voltaremos à fila com o prato ainda quentinho entre as mãos...
Alimentar é um gesto de amor. Sempre foi assim. É a maneira mais elementar de se manter a vida. Embora haja mulheres que sustentem a família e homens que adorem cozinhar, somente elas podem dar aquele toque feminino às refeições.
A partir de 1947, a alimentação deixou de ser um assunto caseiro. Instituída pela Secretaria Geral de Educação, chegou à escola até com sobrenome: Merenda Escolar.
E adivinha quem topou a parada da dupla jornada? Isso mesmo: as mães, desempenhando mais um papel na escola. Desta vez, o de merendeira.
Quem foi criança na década de 70 e estudou em escola pública, como eu, deve se lembrar desta inesquecível figura. Pela janelinha do refeitório, aquela senhora compenetrada – ou risonha – estava sempre pronta a fornecer mais uma colherada a quem pronunciasse duas palavrinhas mágicas: “Capricha, tia.”
Em algumas ocasiões, entretanto, ficávamos pouco à vontade, principalmente quando cismavam de repetir aquela sopa verde. Acho que de tanto olhar para aquele caldinho, acabei ficando daltônico!
Se para alguns o dissabor da merenda só perde para o dia da vacinação, nem tudo é cor-de-rosa também para quem trabalha com o avental branco.
Cuidando da casa, da escola e fazendo bicos nas horas vagas, algumas cumprem jornada tripla. A toca que guarda os cabelos, não detém os sonhos de uma vida melhor...
Nos treinamentos para merendeiras, entretanto, a música que se ouve revela o descompasso entre o conteúdo ministrado e seus verdadeiros anseios.
Quando a voz das merendeiras se faz ouvir, é mais um apelo pela informação relacionada à profissão em si do que alguma dúvida sobre a merenda.
Quem continua martelando as teclas gastas do horário, higiene, e organização, deixa de perceber a verdadeira sinfonia. Seria de bom tom que todo administrador aprendesse cedo a ler nas entrelinhas o que de fato proporciona bem-estar.
Pra encurtar: sem merendeira, não tem merenda! Enquanto quem labuta em instituição educacional trabalhar sob pressão, essa história de alfabetização no Brasil nunca vai passar de um conto de fadas...
Ou de uma tremenda piada de mau gosto.
10. Motoboy: Uma Vida em Suas Mãos
"A ira não é uma expressão de força. É indicação de que a pessoa é incapaz de controlar pensamentos, palavras e emoções. Quando essa fraqueza nos domina, a força da razão nos abandona."
~ Gordon B. Hinckley
Uma cidade. Um motoboy. Uma fechada. Uma ferida.
A cidade não tem nome. Mas poderia ser São Paulo, a Nova Iorque brasileira. Com seus onze milhões se acotovelando – apressados – em busca de um sonho indefinido. Para essa massa acostumada aos dramas do cotidiano, os ases do asfalto já fazem parte da paisagem... Às vezes, do próprio asfalto.
O motoboy também não tem nome. Mas pode chamá-lo de Antônio, Beto ou Carlinhos, já que trabalham todos no Grande ABC . Preocupado se deve ou não passar um creme hidratante na jaqueta de couro, nosso herói acaba se esquecendo que a cada quatro mortes no trânsito, uma pode ser a dele. Que a cada dez acidentes com moto, sete são fatais!
A fechada não tem hora. Mas poderia ser agora. À luz do sol ou sob os raios do luar. De ônibus, táxi ou caminhão. De um estranho ou conhecido. Casual ou intencional. Sangue na pista nunca vira poesia. Ainda mais se for de alguém que a gente ama...
A ferida não tem lugar pra tatuar. Pode ser no ombro, no braço ou na mão. Mesmo na perna, já vende algum jornal. Mas se for na cabeça, a chance de sobrevivência já diminui...
Conter os problemas que criamos é tarefa de todos nós. Ao ser confrontado, o melhor é evitar a fechada, e impedir que essa chaga social se abra cada vez mais.
Quem abastece a mente de pretextos para revidar, nem pode imaginar a dimensão desse conflito...
Mas você pode:
Imagine uma luta por espaço que divide uma comunidade em duas – num momento de impaciência que altera a eternidade. Imagine filhos chorosos cobrando a presença de um pai que não retorna, ou um time desfalcado tentando engolir aquele minuto de silêncio...
Imagine um pai chegando ao hospital, e recebendo a notícia que mais temia. Ao ver o filho sem qualquer brilho no rosto, como num final de novela sem direito às cenas do próximo capítulo. Imagine um processo se arrastando pelos tribunais e uma jovem viúva levantando na penumbra pra se fazer de Papai Noel...
Além de imaginar, existem coisas que você pode fazer:
1. Nunca dirija alcoolizado
2. Sinalize antes de trocar de pista
3. Dê passagem a um motociclista apressado
Com gestos tão simples, mesmo sem sair no jornal você vai escrever uma bela página na história da sua cidade...
Uma história que você mesmo vai fazer questão de contar!
11. Motorista: Quanto Nem Tudo é Passageiro.
O mundo deve ser um lugar melhor devido a sua presença nele, e o bem que há em você deve estender-se aos outros."
~ Gordon B. Hinckley
Vida de motorista parece quadro-negro no final da aula de matemática: é número, cálculo e proporção pra todo lado!
Carteira de motorista, nota fiscal, horário de saída e de chegada, quilometragem... Haja cabeça! Vira e mexe ele ainda se vê às voltas com ângulos, porcentagem e estatística. E muitas retas no meio.
Prudência, resistência, reflexo, perícia, golpe de vista, agilidade, bom humor... Ufa! Com tantas qualidades a bordo, quase não sobra espaço para os passageiros. Transportando pessoas, cargas ou animais, nosso herói vai acelerando o progresso...
Quando criança, almejava ser motorista de táxi. Só para passar o dia ouvindo histórias. Mas uma amiga recém-casada ficou viúva – o marido foi encontrado no porta-malas – e a profissão perdeu o encanto em meus olhos de menino.
Meu tio dirigia ambulância. Em minha visão pueril, ele era um verdadeiro herói. Além de salvar vidas, podia furar qualquer sinal sem perder pontos na carteira!
Outro amigo era caminhoneiro. Além de ótimo goleiro e organizador das peladas no bairro. Mas um caminhão de gás bateu de frente com o dele, e nosso time ficou desfalcado.
Embora não sejam imortais como os membros da Academia Brasileira de Letras , os motoristas desenvolvem características de super-heróis:
Na vida real, os motoristas são protagonistas de histórias inspiradoras. Uma de minhas favoritas é a do taxista que levou uma agradável velhinha de casa ao asilo em sua derradeira viagem.
Com o taxímetro desligado, passearam durante a madrugada inteira pelas ruas de Belo Horizonte, enquanto a saudosa senhora recordava momentos de sua adolescência e vida de casada.
No fim da viagem, ela se sentia preparada para saltar em seu derradeiro destino. Ao retornar dois dias depois para rever sua nova amiga, nosso amigo percebeu que havia dado a ela seu último presente de verdade.
Motoristas assim fazem a gente acreditar que nesta vida nem tudo é passageiro...
12. Padeiro: Excelência por Tradição
"É o uso pleno de nossa mente e a utilização das habilidades de nossas mãos que nos ergue acima da estagnação da mediocridade." ~ Gordon B. Hinckley
Em certas cidades do interior, o padeiro costuma ir de casa em casa, entregando o pão ainda quentinho. Os clientes acertam a conta uma vez por semana, ou por mês. Assim, recebem o pão na porta sem ter o trabalho de se levantar. Noutras, ele bate a campainha e aguarda ser atendido.
Certa vez o cronista Rubem Braga conheceu um padeiro que entregava o pão à porta do apartamento, apertava a campainha e, para não incomodar, avisava gritando: "- Não é ninguém, é o padeiro!"
O cronista interrogou-o sobre essa apresentação e o padeiro respondeu com um largo sorriso: "Quando toco a campainha, às vezes sou atendido pela empregada, e uma voz pergunta lá de dentro, "quem é?", a empregada responde "não é ninguém, é o padeiro." "Assim, acabei descobrindo que não sou ninguém."
Pois se pudéssemos vislumbrar o verdadeiro exército de ‘ninguéns’ que desperta de madrugada e entra em ação para preparar o pão nosso de cada dia, nossas preces matutinas seriam um pouco mais longas. Como uma legião de anjos celestiais, eles sacrificam seu sono para responder nossas orações.
Um padeiro costuma ser um profissional multifacetado. Ainda aprendiz, meu irmão descobriu alguns segredos da profissão que até hoje guarda a sete chaves.
Embora ele fosse um túmulo a esse respeito, fontes seguras me contaram que pouquíssimos teriam a coragem de comer o que eles produziam, se descobrissem como trabalhavam por trás dos bastidores.
Uma coisa eu garanto: depois que trabalhou naquela padaria, ele tornou-se um pouco mais seletivo sobre os locais onde fazia seu lanche...
Todo padeiro tem um quê de poeta, outro de pescador.
Poeta porque já ouvi de um deles, quase em tom de confissão: "Quando vira o tempo, a gente se perde no fermento!"
Pescador porque precisa achar a isca certa para atrair, fisgar e manter sua clientela. Senão o fluxo do caixa vai por água abaixo.
Às vezes, o padeiro é também o dono da padaria. Aí sim, precisa aprender a encantar os clientes. Na primeira vez que entrei numa delas, o dono já aprendeu meu nome. A partir daí, me anunciava logo na entrada, acrescentando algum comentário positivo.
Certa vez, após comprar o dobro do que havia ido buscar, fiquei um pouco mais para admirar sua técnica:
“Chegou o homem que manda”, anunciava à entrada de um. “Olha a moça dos sonhos aí...”, proclamava à chegada de outra.
Quando me virei para contemplar a moça – esperando dar de cara com uma Maitê Proença – o que vi satisfazia no máximo o sonho modesto de um rapaz do interior. A guria foi logo berrando:
“-- Me ‘vê’ dez sonho aí, ó!”
Injusto dizer que o padeiro é – entre os profissionais da madrugada – o primeiro a acordar. Muitas vezes, ele ainda nem foi dormir!
Diversidade é rotina na padaria. Além de suas habilidades manuais, aprende mais palavras que um vendedor de parafusos: bolos, pão doce, broas, croissant, panetone, colonial, cuca, pão de mel, crista de galo, pão de bico, denso, rosquinha, pão-de-ló, torradinhas, bisnaga e... Parafuso.
Cada pão tem suas particularidades:
Uma padaria pode ser tanto o ponto final das madrugadas juvenis quanto o ponto de partida pra quem vai pegar no batente. Depois que o padeiro chega, o cheiro das delícias fumegantes começa a invadir o quarteirão...
À medida que as pessoas começam a trabalhar longe de casa, os alimentos tendem a ser consumidos cada vez mais fora do lar. Boa parte desses alimentos é feita na padaria. Daí cresce também a necessidade de bons profissionais.
Assim como alguns políticos, o padeiro se distrai sovando a massa. Precisa acordar bem cedinho, e começar a correria. Para manter as vitrines sempre sortidas, ele precisa ser habilidoso, criativo, e estar disposto a aprender sempre.
Na França, onde a profissão tem prestígio milenar, os jovens não estão lá muito a fim de botar a mão na massa. Para reverter a situação, o Sindicato da classe procura divulgar a profissão organizando há mais de uma década o Dia do Pão.
No passado, o treinamento desses profissionais incluía uma série de ritos, gestos e sinais que somente os participantes ficavam sabendo. E os profissionais mantinham um sentimento de solidariedade entre os portadores.
A profissão era tão valorizada no passado, que certo Vergilius Eurycasés – o padeiro mais famoso na história de Roma – foi enterrado com honras de majestade!
Se a profissão era assim tão valorizada, fico curioso em saber o que acontece por trás dos bastidores, que faz com que atualmente tão pouca gente se interesse nessa arte milenar?
Acho que vou ficar sem saber mesmo. Se você tiver algum conhecido padeiro, pergunte a ele e me escreva, pois já cansei de perguntar ao meu irmão...
Muito antes de ser aprendiz de padeiro, ele já era muito bom em guardar segredos!
13. Parteira: a Guardiã da Vida
"Eu não poderia desejar-lhes nada melhor do que uma vida produtiva, com serviço dedicado e voluntário e contribuições para o conhecimento e o bem-estar do mundo em que vivem."
~ Gordon B. Hinckley
Segundo a crendice popular, quem sonha com parteira está prestes a descobrir um novo segredo. Na realidade, cada parteira passa a vida desvendando os segredos da própria vida.
Embora o ato de conceber uma criança aproxime a mulher de seu parceiro, é no momento do parto que se manifesta toda a força da natureza feminina. Nessa hora, sorte de quem tem uma amiga de verdade por perto: a parteira.
Ao invés de apartar, essa artista que entende a música do corpo e da alma aproxima. Está sempre pronta a ouvir, confortar, acariciar, ou simplesmente... Esperar.
Após longos momentos de espera, mãos calejadas e experientes dão as boas vindas aos pinguinhos de gente que estréiam no show da vida. No passado, ainda recebiam presentes como sinal de gratidão. Hoje, procuram se contentar com a satisfação do dever cumprido.
Dois projetos de lei que pretendem regulamentar a profissão no Brasil arrastam-se há anos pela Câmara dos Deputados. Enquanto isso, as corajosas parteiras se apressam pra exercer seu ofício de amizade, amor e fé.
Vamos fazer as contas: Se cada parteira faz até cinco mil partos na vida, com o trabalho de vinte delas já se enche o Maracanã!
O exercício dessa arte também já rendeu crendices interessantes:
Para um bom parto, canja de galinha arrepiada.
Quanto mais canjiquinha para a mãe, mais leite para o filho.
Enterre o cordão umbilical no quintal, para que o bebê ame a família.
O nascimento de um bebê tem sempre seu próprio ritual. Cada etapa do processo é recheada de afirmações de louvor e gratidão.
No passado, as igrejas anunciavam a chegada do novo rebento com nove badaladas... Era a celebração da vida!
Ainda hoje, cada parto traz consigo ao menos três novos nascimentos: um novo bebê, uma nova mulher, e uma nova parteira. Enquanto não for regularizada, essa que é uma das mais belas profissões vai continuar sendo ensinada na única escola cujo acesso é sempre livre...
A escola da vida.
14. Pedreiro: o Escultor de Sonhos
"Não há substituto sob os céus para um trabalho produtivo. É o processo pelo qual os sonhos tornam-se realidade. É o processo pelo qual as visões idealizadas tornam-se realizações dinâmicas."
~ Gordon B. Hinckley
Como se diz ‘carpinteiro’, ‘bombeiro hidráulico’, ‘eletricista’, ‘pintor’ e ‘mestre-de-obras’ em uma só palavra? Se você leu o título, já sabe de quem estou falando...
Além desses atributos, esse autodidata se torna físico, matemático, engenheiro, arquiteto. Desde os dias dos faraós, o pedreiro constrói sonhos e molda a matéria bruta, traduzindo em realidade as mais belas visões.
Uma colherada de cada vez, ele vai criando algo maior do que si mesmo, e que resistirá ao tempo, mais do que ele próprio. Se o sonho do homem é deixar algo de si para as futuras gerações, esse profissional realiza dia-a-dia tal proeza. Centenárias contruções prestam vivo testemunho a diversas gerações de que por ali passaram pedreiros de mão cheia.
Quando a vida era ganha no cabo da enxada, mãos calejadas serviam de prova diante de qualquer revista policial. Assim como o número de anéis no casco da tartaruga serve de base para se imaginar a idade do réptil, a quantidade de calos na mão do pedreiro atestava seu zelo na profissão. Assim como os trabalhadores da roça, levavam aonde quer que fossem a identidade e a carteira de trabalho nas mãos.
Prumo, nível, linha, mangueira, régua e esquadro. De colher na mão, o maestro vai regendo a orquestra ao executar mais uma obra-prima. Tendo a seu lado um fiel escudeiro, o servente.
Enquanto alguns a consideram como bico ou biscate, outros encontram na profissão a vocação de uma vida inteira.
Conforme a necessidade, o sonho de ‘fichar’, ou seja, trabalhar de carteira assinada, vai aos poucos dando lugar ao trabalho por empreitada ou diária. É a saída para se manter ocupado.
Como cada obra concluída se soma às anteriores, o currículo do bom pedreiro é a propaganda boca-a-boca. Um trabalho mal feito e toda sua reputação vem abaixo. Além da excelência no trabalho em si, precisa manter a simpatia, presteza, limpeza e discrição.
Manhã de sábado, sete da matina. Não há nada mais brasileiro do que uma turma alegre reunida num dia de sol pra bater laje num bairro de periferia.
Como numa dança bem ritmada o pequeno exército vai passando de mão em mão os baldes com o grosso caldo que vai tirar mais uma família do aluguel.
Às vezes sob a liderança de um único joão-de-barro a turma de voluntários organiza a revoada para auxiliar uma viúva, um idoso ou qualquer amigo que precisar. Batendo lajes ou construindo muros, erguem a casa e o moral, ao mesmo tempo.
Se do alicerce ao telhado o pedreiro tem carta branca pra transitar, basta a obra ficar pronta para ser muitas vezes, ele mesmo, proibido de entrar.
Antes do médico ou enfermeira, é ele quem chega ao hospital. Lança o alicerce, levanta as paredes, bate a laje. Antes do professor, ele freqüenta a escola. Embolsa as paredes, assenta o piso, fixa o quadro no lugar.
No local onde tantas vezes se sentou com a marmita entre as mãos e sonhou com um futuro melhor, seu filho não pode agora sentar-se para estudar. E assim que a porta se fecha, deixa de fora o profissional que a assentou...
Apesar dos pesares, tem gente disposta a vencer barreiras para entrar nessa luta. Numa profissão considerada um verdadeiro Clube do Bolinha já tem menina se preparando pra entrar.
No Ceará, por exemplo, dezenas delas que antes se dedicavam à cozinha estão trocando a colher de sopa pela de pedreiro, se preparando para conquistar uma fatia de bolo neste mercado.
Faça chuva ou faça sol, lá vão eles – ou elas – construindo, reformando e edificando. Fazendo deste país um lugar melhor pra se viver e se morar.
Para que possam conquistar seu próprio espaço num mundo que eles mesmos construíram, levanto essa bandeira. Pois há palavras que têm o dom de perdurar tanto quanto uma obra bem feita.
A cada palavra dita a seu tempo, e a cada tijolo bem assentado - fica um quê de eternidade...
15. Pintor: um Poliglota no País das Cores
"O trabalho é um milagre que faz com que o talento sobressaia e os sonhos se tornem realidade." ~ Gordon B. Hinckley
Você sabia que a cor... “É uma percepção visual provocada pela ação de um feixe de fótons sobre células especializadas da retina, transmitida ao sistema nervoso através de informação pré-processada no nervo óptico?”
Se isso te serve de algum consolo, caro leitor... Nem eu. Mas basta uma olhadela para uma casa bem pintada, e logo percebemos que por ali passou um bom pintor.
A bem da verdade, nunca se começa uma casa pela pintura. Mas naquele momento em que o bolso do construtor já está de língua de fora – com ares de prorrogação – é o pintor quem sopra o apito final.
Seja num arranha-céu ou numa casa de campo, quando o pintor dá o primeiro giro no rolo, a satisfação é a mesma. Esse artista que junta a beleza à estética precisa de uma sensibilidade quase feminina – ainda que colecione calos nas mãos. Diga-se de passagem, é o segundo profissional mais requisitado na época do Natal – só perdendo para o Papai Noel!
Se você costuma despender preciosos minutos tentando combinar suas roupas com seus sapatos, imagine o malabarismo desses profissionais que têm um infinito de cores ao seu dispor?
Com a precisão no olhar e ouvidos atentos às exigências de cada cliente, esse alquimista dos tempos modernos vai alisando as paredes e maquiando as imperfeições, feito num rosto de noiva. E corre a lixa logo em seguida, porque massa corrida seca ligeiro.
A seguir, mistura os matizes como um alquimista moderno em busca da pedra filosofal. E começa a cada vez sua nova obra prima. Se você pensa que pintar é apenas rolar o rolo e espalhar a tinta, precisa rever seus conceitos.
O conhecimento de solventes, técnicas de aplicação de textura, pintura decorativa, linguagem das cores, métodos para diminuir a diferença de tonalidade dos materiais de pintura, e até certa familiaridade com o tempo, faz parte das habilidades desse profissional.
Quando o malabarista de cores sobe no andaime, é sinal de que o show vai começar. Para dar a tonalidade certa, ele precisa entender de cores. E de humores, pois cores e texturas despertam sentimentos e sensações em quem freqüenta o ambiente. E olha... Tem patrão pra todo gosto.
Mesmo sabendo que nunca irá agradar a todos, o alfaiate da construção lava e passa cada parede, antes do retoque final. Como um verdadeiro tecelão, vai combinando os matizes a fim de dar forma à tapeçaria.
Quem nunca se aventurou a dar uma de pintor, que arrisque a primeira pincelada!
Mas se quiser contratar um profissional de verdade, chame logo um bom pintor. No final das contas, e da obra, é sempre ele quem declara que o trabalho está consumado.